INTRODUÇÃO AO NT - OS LIVROS HISTÓRICOS DO NT

Ruínas da Grécia Antiga (imagem tamanho 1024x768)
Por: Rev. Ivan Pereira Guedes

O Novo Testamento pode ser dividido dentro de três categorias, com base em sua constituição literária - o histórico, o epistolar, e o profético. Os quatro Evangelhos compõem 46% da literatura do Novo Testamento e se incluirmos o livro de Atos chegaremos aos 60%. É nesta maior parte do Novo Testamento que está registrada as origens e desenvolvimento histórico do Cristianismo. Ele esta construído sobre estes fatos históricos. Isto é inerente da própria natureza do evangelho. Cristianismo é a mensagem do evangelho e o que é um evangelho? São as boas notícias, informação derivada do testemunho de outros. Isto é, história, o testemunho de fatos históricos. “O evangelho é notícias de que alguma coisa  aconteceu — alguma coisa que transformou a maneira de se viver. E este alguma coisa é descrita a nós por Mateus, Marcos, Lucas e João como sendo a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.” Seguindo neste mesmo objetivo, Atos continua o relato histórico da expansão da mensagem do Evangelho, saindo de Jerusalém, passando pela Judeia e Samaria, e alcançando as partes mais distante da terra. Lucas deixa-nos claro este aspecto:

“Fiz o primeiro tratado (o Evangelho), ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar,  até ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias e falando do que respeita ao Reino de Deus.” (At 1:1-3)  Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra.” (At 1:8)
Lucas é o primeiro volume e Atos é o segundo da obra de pesquisa histórica efetuada pelo Dr. Lucas  sobre a vida e ministério do Senhor e Salvador Jesus Cristo. Esta história não termina com sua ascensão, mas tem continuidade através do Espírito Santo agindo na vida dos seus apóstolos. Atos é então o relato histórico do ministério apostólico  na vida da igreja em seus primórdios. Estes relatos tornam-se cruciais para uma compreensão correta das epístolas, que foram escritas para pessoas que viveram num tempo-espaço histórico definido.  O Novo Testamento, então, é o registro histórico das Boas Novas de Deus manifestado na história humana, não somente no passado, mas no presente e no futuro à luz das suas promessas .

Entretanto, para se fazer uma correta analise e aplicação da mensagem contida nos relatos evangelicos, é indispensável que se atente com diligência para os três momentos, de forma geral, através dos quais chegaram até nós este conjunto de ensinos e a vida de Jesus:

- No primeiro momento temos o Senhor Jesus escolhendo o grupo apostolico dentre aqueles que desde o inicio, viram suas obras, ouviram suas palavras e foram assim capazes de se tornarem testemunhas oculares de sua vida e de sua doutrina. Após a ressurreição a fé deles se consolidou, uma vez que se fundamentava no que Jesus havia feito e ensinado. No inicio, houve a pregação oral dos Apostolos, centralizada em torno do que ficou conhecido como "kerigma - khrugma " (anúncio solene; proclamação, pregação) e na “didaquê - didach”   (ensino, instrução). A primeira se constituia numa apresentação sintética e esquemática da vida e da atividade de Jesus. Insistia-se, sobretudo, no anúncio de João Batista, na pregação e atividade de Jesus na Galiléia (com ênfase nos relatos de milagres), a sua paixão, morte e ressurreição. Estratos deste arcabouço pode ser visto nas pregações registradas por Lucas em Atos (At 2:22-36; 3:16-26; 4:8-12; 10:36-43; 13:16-41). A segunda era uma instrução de forma mais completa  dada aos novos membros das comunidades cristãs, onde se procurava  nutrir a fé dos iniciantes, trazendo-os ao conhecimento dos detalhes mais significativos da vida e do ensinamento de Jesus. Esta estrutura da “didaquê” pode ser percebida vividamente nas correspondências de Paulo.

- Num segundo estágio temos os registros um pouco mais circunstanciados dos eventos mais importantes: primeiro, o da Paixão, que logo tomou uma forma mais ou menos esquematizada, como pode se perceber no paralelismo caracteristico dos quatro relatos evangélicos; depois, os relatos curtos, ainda sem uma ordem mais definida, para enfatizar a vida e ministério de Jesus,através de algum ensino memorável, algum milagre, sentença, parabola, etc...

- Numa terceira etapa, sobretudo quando as testemunhas oculares começavam a dasaparecer ou afastar-se para muito longe - depara-se com a necessidade, como diz Lucas, de se "colocar em ordem a narração das coisas" que se referem a mensagem e pessoa do Senhor Jesus - surgem os registros evangélicos. O que inicialmente são estratos avulsos, acabam tomando a forma dos evangelhos canônicos. Evidente que cada evangelista utiliza-se do material primario conforme seus métodos e objetivos próprios. Selecionam entre vasto material à disposição (quer da própria memória ou recordações, quer do testemunho daqueles que "desde o inicio foram testemunhas oculares e ministros da Palavra"), redigindo muitas vezes de forma sintética (às vezes seguindo uma organização cronológica de certos eventos e acontecimentos; outras vezes seguindo uma estrutura temática, ou ainda, organizando em ressonancia ao contexto das Igrejas, que rapidamente se multiplicavam), empenhando-se zelosamente de maneira que seus leitores pudessem encontrar fundamento solido para estabelecerem sua fé. Porque os hagiógrafos escolheram livremente e adaptaram conforme às várias condições e finalidades a que se propuseram, o material à sua disposição, é que podemos entender as suas muitas similaridades e dissonancia. Deste modo, não argumenta contra a genuidade da narrativa o fato de que os Evangelistas utilizem os ditos de Jesus em ordem diferenciada e não os registrem com as mesmas palavras ou expressões, mas tenham o cuidado de preservarem o mesmo sentido.

Se o estudante não levar em consideração este processo e seus vários estágios, desde a origem até a composição dos Evangelhos e não fizer um adequado uso das modernas ferramentas e descobertas à sua disposição, fracassara em extrair corretamente qual tenha sido a intenção dos escritores canonicos e o que realmente desejavam comunicar. Os que abordarem de forma paciente e diligente os textos evangélicos, descobrirão e comunicarão com maior autenticidade o seu valor teológico e inexaurível, contribuido efetivamente para se alcançar os objetivos pelos quais o Senhor os estabeleceu. 

Material utilizado em sala de aula: Seminário Bíblico Brasileiro (SP); Faculdade Latino Americana de Teologia Integral (Arujá); Instituto Bíblico Presbieriano-Rev. João Silva (SP).

“Em data bem recuada, depois da publicação do quarto evangelho, os quatro evangelhos canônicos começaram a circular como uma coleção, e assim tem continuado desde então. Quem primeiramente os reuniu para forma um conjunto quádruplo, não o sabemos, e é bastante incerto onde o conjunto quádruplo veio a ser conhecido em primeiro lugar – reivindicações tem sido feitas tanto a favor de Éfeso como de Roma.” DOUGLAS, J. D.  O Novo Dicionário da Bíblia, ed. Vida Nova, São Paulo, 2001, p.570.

  “0 termo grego [ Euaggélion ], que se traduz por «evangelho», provém do grego profano. Significava, por exemplo, em Homero e Plutarco, a recompensa dada ao mensageiro por sua mensagem; ou, no plural, as ofertas de ações de graça aos deuses por uma boa nova. Por extensão, veio a designar, em Aristófano por exemplo, a mensagem propriamente dita, e depois, o conteúdo da mensagem, a boa nova anunciada. Assim o aniversário do imperador Augusto, chamado deus e salvador, foi festejado como «o começo, para o mundo, das boas novas, que ele trazia.» A tradução grega do Antigo Testamento, chamada Setenta (Septuaginta), emprega esta palavra também para assinalar mensagens felizes. Entre os cristãos primitivos, o euaggélion, é primeiramente a boa nova da salvação realizada em Jesus Cristo, tal qual é anunciada oralmente pelos apóstolos. Somente mais tarde, o termo se aplica à forma escrita desta boa nova apostólica. Enfim, chega a designar (por volta de 150 d.C.) aqueles escritos do Novo testamento que contam mais precisamente a vida terrestre de Jesus Cristo. E é neste sentido que se fala dos quatro evangelhos e que se chamam de evangelistas os autores aos quais são atribuídos: Mateus. Marcos, Lucas e João.”  Oscar Cullmann, A Formação do Novo Testamento, Ed. Sinodal, São Leopoldo, 1979, pp. 19-20. No Novo Testamento grego, evangelho é a tradução do “euaggelion– euaggélion” (boas notícias) e como substantivo ocorre 76 vezes; na forma verbal “euanggelizo” aparece 54 vezes, significando “trazer ou anunciar boas novas.” Ambas são derivadas do substantivo “aggelov– aggelos” (o mensageiro). No grego clássico, um “euanggelos” era aquele que trazia uma mensagem de vitória ou outras notícias políticas ou pessoais que causassem alegria. Além disso, “euangelizomai” (a forma de voz mediana do verbo) significava “falar como mensageiro de alegria, proclamar boas notícias.” “A forma plural, ‘evangelhos’ (em grego, euangelia -  euangelia ) não teria sido compreendida nos tempos apostólicos, nem  mesmo durante mais duas gerações seguintes; pois faz  parte da essência da mensagem apostólica que existe apenas um único verdadeiro euangelion; quem quer que proclamace outro, no dizer de Paulo, que fosse ‘anátema’ (Gl.1:8 e seg.). Os quatro registros que tradicionalmente  aparecem no inicio da coleção dos livros do Novo Testamento são, propriamente falando, quatro registros de um único evangelho –  o ‘evangelho de Deus ... com respeito a seu Filho’ (Rm.1:1-3). Não foi senão já nos meados do segundo século de nossa era que começou a ser usada a forma plural; assim é que Justino Martir diz que as ‘memórias compostas pelos apóstolos’ são chamadas de ‘Evangelhos’ (Primeira Apologia 66). ... Os titulos tradicionais dos quatro registros subentendem que neles encontramos o Evangelho ou boa mensagem acerca de Cristo conforme cada um dos quatro evangelistas.”  DOUGLAS, J. D.  op. cit., p.567.

"Isso,contudo, não quer dizer necessariamente que se devam considerar os Evangelhos como 'história', no sentido técnico e moderno da palavra; nem tampouco como 'biografia' no sentido preciso e sobretudo moderno do termo, porque tanto os Apóstolos e os primeiros pregadores cristãos, quanto os quatro Evangelistas que escreveram os Evangelhos canônicos, tiveram um objetivo mais 'teológico' do que 'profano' ou 'sentimental', isto é, falaram ou escreveram para 'converter' ou 'edificar', inculcar a fé e aclará-la e, na ocorrência, defendê-la contra adversários, muito mais do que para conservar para a posteridade a lembrança dos fatos.  O próprio João deixa isto bem claro quando explica o motivo de ter composto sua obra (Jo 20:30). Nem por isso se deve deixar de lado o fato de que eles o fizeram com a ajuda de testemunhos verídicos e ao mesmo tempo controláveis, com uma probidade de consciência acima de toda suspeita, inclusive não dando azo a refutações hostis. E a mesma probidade de consciência revelaram os que redigiram a Boa-Nova da Salvação e os relatos referentes ao que Jesus fizera e dissera, com uma objetividade tão grande que até a perfeição literária se ressentiu um pouco, em razão daquela 'fidelidade' às fontes que manifestaram em grau tão elevado." Frei Martinho P. Burnier, Perscrutando as Escrituras - São Marcos, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1968, p.131.

  J. Greshem Machen, op. cit., p. 17. "A verdade central do evangelho é que Deus providenciou um meio de salvação para os homens dando seu próprio Filho ao mundo. Ele sofreu como um sacrifício pelo pecado, superou a morte, e agora oferece uma parte do seu triunfo à todo aquele que crer nisto. O evangelho é boas notícias porque é um presente (dom) de Deus, não algo que deve ser ganho através de penitência ou quaisquer outros meios (Jn 3:16; Rom 5:8–11; II Cor 5:14–19;)". Charles F. Pfeiffer, Wycliffe Bíblia Enciclopédia, (Chicago, IL,: Imprensa, 1975), mídia eletrônicas.

Para um estudo mais aprofundado do termo, consultar a excelente obra: Colin Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, v.3, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1989,  pp739-758.

“Jesus não é apenas o objeto de uma fé posterior, que, por sua vez, deu origem ao crescimento da tradição oral bem como escrita, mas, sim, Jesus, como Messias e Mestre, é o objeto e sujeito de uma tradição de palavras autoritativas e sagradas que Ele mesmo criou, e confiou aos Seus discípulos para serem transmitidas depois, no decurso do período entre a Sua morte e a parusia.” Itálico meu. (The Gospel Tradition and its Beginnings, StudEy, I, 1959, p.29), citado por Colin Brown, op. cit., p.750.

 Agostinho faz uma colocação muito precisa quanto a este terceiro estágio: "É bem provável que todo Evangelista se julgou com o dever de narrar segundo aquela ordem que Deus quis sugerir à sua memória as coisas que narrava, ao menos naquelas coisas cuja ordem, qualquer que tenha sido, nada tira da autoridade e da verdade evangélica. Porque efetivamente, o Espírito Santo, distribuindo os seus dons a cada um como lhe apraz, e por isso mesmo governando e dirigindo a mente dos santos a fim de colocar os Livros em tão elevado grau de autoridade, relembrando as coisas a serem escritas, permitiu que cada qual dispusesse de sua narrativa à sua maneira, todo aquele que procurar com piedosa diligência, ajudado por auxílio divino, poderá encontrar." Frei Martinho P. Burnier, op. cit.,  citando 'Instrução Sancta Mater Ecclesia', A.A.S. 1964, p.715.

Formação Acadêmica do autor: Bacharel em Ciências Contábeis (Universidade Cruzeiro do Sul-SP); Bacharel em Teologia (Sem. Presbiteriano—Rev. José Manoel da Conceição-SP); Pós Graduação Lato-Sensu em História do Cristianismo (Universidade Metodista de Piracicaba incompleto). Igrejas: IPB Jd. Popular, IPB Jd. Pedro José Nunes e  IPB Canaã (Jd. Helena) em SP; IPB Vicente de Carvalho-Guarujá [desde 2005].


Fonte: Reflexão Bíblica.
Leia o post anterior: PODEMOS CONFIAR NO NOVO TESTAMENTO? 

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